Todo mundo tá escrevendo sobre mãe, todo mundo tá sendo mãe. Mãe mãe mãe. Toda mulher é alguma mãe, toda pessoa. Toda estrada tem uma esquina, mesmo que não tenha. Tem sim.
Ontem encontrei minha mãe. No espelho de um elevador. Elevador de um prédio que não é o meu prédio – ela nunca veio aqui, não sabe que eu tô aqui, não vai gostar de saber. Meu pai, que bizarro, já veio: pra ver apartamentos, no final da pandemia. E só. Naquela época da busca, ela achava que eu não seria capaz de morar sozinha, depois de dois anos e meio numa situação análoga a união estável. Eu sempre sou capaz, mesmo quando não sou capaz.
Puxei pra trás o cabelo e vi seus traços, idênticos. A blusinha branca soltinha, pra dentro dos shorts. Shorts cintura alta como os de antes, os do seu tempo. Os nossos tempos se repetem, se engolem, colidem, dentro e fora das roupas. Pro espelho quis perguntar: mãe, o que você tá fazendo aí? Vai embora. Fica.
Chego no térreo, atravesso a rua, e seguro a vontade de chorar até a seção de queijos do mercado em frente. Entre um Camambert e um Gouda, eu sinto essa distância elástica, quilômetros e centímetros em minutos. Ela está ali, eu sei, teoricamente é só pegar um metrô e descer na Tijuca. Mas algo acabou pra sempre. Mas não acabou e foi-se com o espaço. O espaço ficou. O espaço grita.
Eu nunca fui criança de precisar muito. Comportamento bom, notas ótimas, escola pública, imunidade de ferro. Mas era uma criança. Já contei nessa news dos castigos — em um deles, fui parar no xilindró de um quarto sem TV e sem interações porque meu irmão se jogou do berço e eu não tive a chance de ver e impedir. Eu tinha quatro anos. Achei injusto — acho. Mas ali a minha mãe me ensinou uma coisa: que eu sou uma mulher. Como ela é.
Minha mãe com a roupinha branca, a mãe com a blusa regata branca, shorts bege, cintura alta, é a criatura mais forte do mundo. Eu queria ter um pouco dos seus genes inquebráveis, da sua força. Da sua força que é muito capaz de chorar na seção de queijos, porque passa por cima de tudo, de todos, de si, até que alguma coisa mole e láctea provoca talvez um ódio talvez uma compaixão talvez só um choque, pedra e água, talvez só o brado retumbante da solidão, porque cuidar de alguém não significa absolutamente nada, se significasse alguma coisa, talvez eu tivesse olhando pra minha mãe, e não pros queijos no resfriador.
Eu sei que tem no Google, mas eu queria perguntar pra ela se é dipirona ou paracetamol que tem que evitar. E aí, na ligação, nós de novo uma, um fio único de som, invisível, tecendo o silêncio entre perguntas e respostas. Uma força, uma ordem de caos que se reconhece, se propaga, que atingiu o espelho ontem sem quebrá-lo, me quebrou inteira. Mas não dá pra ver nenhum pedaço porque, como se diz por aí ,vaso ruim não quebra. E apesar de ser boa, eu sou ruim também.
O Google me disse que pode dipirona e pode paracetamol, o que não pode é Ibuprofeno.
Tá todo mundo escrevendo sobre mãe. Eu escrevo sobre o que todo mundo tá escrevendo, simples.
Eu sou todo mundo. Ela é também.
Outro dia, minha avó mostrou fotos da minha mãe novinha, uns 10 anos, na casa deles em Cavalcanti, subúrbio do Rio. Minha família não tem lá muitas fotos antes da minha geração. Estão ela e os irmãos embonecados, com uma roupa de festa que raramente usariam em uma tarde qualquer em casa. Mas a foto é uma espécie de cerimônia. Minha mãe usava botas de cano alto e apoiava a palma no corrimão da escada, sorrindo. Irredutível, imparável. Eu diria que ela parecia uma menina que não tinha medo da vida, mas sabendo como aquela menina cresceu, eu sei que ela fez a vida ficar do seu tamanho. O que talvez seja mais.
Minha mãe tem 1,65 de altura, eu tenho 1,69. Queria muito lembrar do dia em que tive o seu exato tamanho. Como foi? Comemos pizza? Alguma de nós estava menstruada?
No dia em que minha mãe menstruou pela última vez, eu menstruei depois de dois anos sem uma gota de sangue. Me lembro de vê-la na cama, pré-cirurgia, enquadrada pelo batente da porta.
Me lembro especialmente das paredes e do barulho irritante da sola dos meus pés pela casa.
Naquele dia, minha mãe precisou de ajuda, pela primeira vez em 500 anos. Não ajudei o suficiente.
Minha mãe me irrita quando é muito forte ou um pouco fraca.
Pouco depois que escrevi a última newsletter, fiz uma ressonância magnética pra confirmar uma enxaqueca com aura (e descartar todo o resto, praxe). Quem nunca fez pode checar no YouTube como é a dinâmica. Minha mãe também tem enxaqueca e não deixou de trabalhar um minuto em seu trabalho não remunerado por causa de qualquer dor. Comigo foi diferente: sou CLT, e se não me engano, tirei uns dois intervalos de 15 minutos pra tomar um banho quente. De fato, não era nada tão incômodo.
Lembro do dia em que ela fez a ressonância, quando eu ainda era pós-criança ou pré-adolescente. A descrição de ser enfiada num tubo insuportável, porque os barulhos eram horríveis, enlouquecedores, ela pedindo pra sair e o pessoal da clínica pedindo pra aguentar mais um pouquinho porque era assim mesmo e ela quase desistindo do exame porque os barulhos eram tipo pesadelos.
Se minha mãe achou difícil, é porque deve ser impossível.
Chegado o dia, devidamente posicionada no tubão, fecho os olhos e foco em não surtar, não surtar, não surtar, mas aí os barulhos vêm. Ok. Os primeiros parecem uma música do Kraftwerk. O importante é não pensar no tubo, não vê-lo, não imaginá-lo, não. Pensar que estou numa barraca de camping em algum festival, à noite, e tem um show do Kraftwerk ali do lado. Suave. Outros barulhos vêm como cacos de vidro audíveis, espalhados, espatifados, vasos se quebrando e remontando e se quebrando e sei que não há lógica nenhuma, sei que não há música, é só corrente elétrica e engenharia, mas me sinto observando rostos em nuvens e junto os cacos de vidro, faço com que caiam juntos e verticais como chuva, e enquanto chove formo palavras que a máquina — meu céu — quer me dizer, e ela repete: TÁ RUIM TÁ RUIM TÁ RUIM.
Nesse dia descobri que, ao contrário da minha mãe, eu só tenho medo quando o barulho para.
Saio da seção de queijos, vou no mercado ao lado, compro o que preciso, volto rápido, preocupada. Penso em quais seções do Mundial ela também já teve vontade de chorar.
Talvez todo esse texto seja só uma confluência de TPM e culpa — assim como rosa e sutiã, coisas que muitas de nós somos obrigadas a usar.
A última etapa do caminho de volta é o espelho. Sorrio pra ele de propósito. Ouço os ângulos do meu rosto. O cabelo cacheado que ela alisou. A mulher que eu não fui é a mulher que eu sou. Grita em todos os vazios, mercados, culpas. Ressonâncias.
Todo mundo tá escrevendo sobre mãe.
Nem sempre escrevo sobre mim. Mas tudo o que escrevo sobre mim é sobre ela.
Tô sumida daqui sim (aliás, desculpa!), mas é por um bom motivo: de livro finalmente pegando no tranco, além de muito trabalho e coisas da vida aqui e ali. Torçam pra que venha aí :)
Como recado paroquial de hoje, em uma newsletter com esse tema, em um país como esse, num tempo como esse, queria dizer que ser mãe é (deveria legalmente ser) uma escolha que compete apenas à dona do útero. Fim.
Um beijo e até!