Você provavelmente não vai concordar com meu argumento aqui, nem com as minhas imagens. E tudo bem. É por isso mesmo que vou escrevê-los.
Quero ouvir a voz desse objeto rachado.
Hoje é um domingo. Um domingo ensolarado. Sim, é manhã. Ouço pouquíssimos deslizares de pneus. Os pássaros já estão de folga — ouvi em um episódio do Rádio Escafandro que eles cantam cada vez mais cedo em São Paulo. Quando a madrugada ainda é madrugada demais.
A cidade parece quase imóvel. Um prazer imenso nisso. Claro, estou hospedada em Santa Cecília, há um recorte de classe aqui. Mas sim, daqui, a cidade está quase imóvel. O sol, o frio, as copas das árvores que não balançam.
O sono. Há um sono que contamina o tempo janela afora. O sono de quem dormiu muito tarde ontem. De quem dormiu cedo. O sono de quem trabalhou muito, muito, até não poder mais. O sono de quem não dormiu. O sono é denso. Ele abafa os barulhos dos carros, das pessoas, ele fecha os olhos da vida ao redor. Abre os meus.
No Rio de Janeiro não tem isso. Não sei explicar, mas tento. Eu saio às 8h de qualquer lugar, num sábado, num domingo. A rua está cheia. E que ótimo. Mas ela está. O Rio passa por cima das coisas. Também trabalha-se até tarde no Rio. Também festeja-se até tarde. Bebe-se demais. Tudo. Só que a densidade não se forma. Se dissipa — na umidade? E aí, às 8h de um domingo ensolarado, frio ou quente, a rua está inundada de barulhos, de vida, de palavras.
São onze e trinta e seis da manhã de um domingo. Estou de pijama, e num grupo de WhatsApp, meus amigos que estão no Rio combinam de almoçar no centro da cidade.
Na sexta-feira antes de vir pra São Paulo eu chorei de cansaço. Pior: foi em público. Sei que não é certo. Mas só aconteceu. Às vezes a gente só precisa de um tempo. Botar a umidade pra fora e pegar no sono. Só que não há tempo. Tudo começa o tempo todo. Não dá.
Morei por quatro meses em São Paulo em 2013. Eu tinha vinte e um anos e foi a minha primeira experiência morando em uma cidade brasileira longe dos meus pais (antes disso, ganhei uma bolsa de intercâmbio pra cursar seis meses de jornalismo no México). Participei de um programa de trainee de um grande jornal e também fazia as minhas últimas matérias da faculdade à distância. Terminava a dissertação. E tive muita vida social naqueles meses, muita. A dissertação ficou uma merda, meu orientador disse isso, mas fiz o que pude pra escrever histórias boas por aqui. Conheci muita gente. Fiz grandes amigos. Trabalhei muito.
Uma lembrança feliz era essa: ter um tempo pra me sentir extremamente cansada. Afinal, ninguém estava acordado. Um sábado, um domingo, levantar no silêncio, de ressaca. As ruas meio imóveis, a metrópole que se engole e fica enjoada de tanto se engolir. Ir pra rua com o corpo estalando de moleza, leveza, ninguém pra me dizer nada, lembrar das palavras da véspera nas curvas vazias, subir ladeiras devagar, a fome, o frio, a duração de um café, olhar fundo qualquer coisa até essa coisa virar outra coisa, até um cappuccino virar um dragão.
Essas manhãs eram a definição de magia.
Pra escrever, talvez eu precise parar as coisas. Aí eu paro, pego as coisas, jogo pro alto, mudo de lugar, arrasto. Pra escrever, talvez eu precise mover as coisas que estão paradas. Ops.
Desde que cheguei a São Paulo, há uma semana, ando inexplicavelmente obcecada com uma cantora australiana chamada Hazel English. Mais precisamente por uma música chamada “Hamilton”. Conheci ambos num desses shuffles da vida do Spotify. Há uns meses o app me sugeriu “Nine Stories”, outra música dela — o algoritmo tem acesso às nossas informações de navegação e isso me pareceu, diante das circunstâncias de obsessão pós-livro, uma indicação até bem óbvia.
Bem, em “Hamilton” só o refrão é cantado. O resto da música é uma prosa em versos lida por ela sem muita emoção. É uma espécie de conto (descubro pela Wikipedia que Hazel é formada em criação literária) no qual ela conhece um aparente vizinho — só sabemos que ele é alto e tem olhos castanhos. Ele a convida pra uma volta no parque, onde uma série de coisas esquisitinhas acontece, e aí ela chega naquela clássica encruzilhada de peraí, isso é um sonho? And it was, I was sleeping. And then I woke up, and I was like: "Fuck".
A música não tem absolutamente nada de incrível. Mas a melodia me parece uma sinfonia de caos urbano, umas repetições que poderiam partir de uma obra na esquina, sirenes. Ouço luzes em feixes que parecem estáticos, porque móveis.
Subo do metrô Santa Cecília e, às nove da noite, a cidade já se resume a focos de agitação. As ruas escuras. Aqui não tenho medo, nunca tive. Pode vir angústia, tristeza, solidão, mas medo, nunca. Paro a cidade enquanto subo a rua. Sinto que, mesmo não fazendo o melhor, tenho feito algo. As coisas vão se ajeitar. Eu ajeitando as coisas, todas paradas. Hazel também suspende seu mundo nos meus ouvidos ao descobrir, de novo, que está dormindo, e não indo pra Suíça de dirigível com o vizinho.
Penso que as cidades outras, essa alteridade muito singular de estar em um lugar que você mal conhece, se mostram às vezes como sonhos vívidos. Eu em outra geografia, com outros sons dentro das palavras, outras pessoas. Uma vontade outra. Aí você se pergunta: isso é um sonho? E não é. Tem sensação melhor?
Acho que hoje conheço São Paulo, um pouco. Muito da suspensão, da hipótese de sonho que coloria essa minha primeira estadia aqui, aos 21 anos, se perdeu. Mas muito ainda fica guardado na visita. A presença de algo sempre evoca o fim da sua ausência. Se a milésima vez não tiver absolutamente nada da primeira vez, então as coisas talvez tenham virado outro coisa. Não é água e depois gelo, é água e depois, sei lá, batata. Que até tem água, mas.
Se isso é bom ou ruim, eu não sei. Nem sempre as coisas são boas ou ruins.
O silêncio dessa cidade barulhenta faz com que eu veja o barulho do meu corpo. Meu corpo não tem nada de especial, mas ele existe. Por tempo limitado. É bom lembrar disso. É bom quando o concreto me lembra que eu tenho um corpo. Os prédios ficam, os habitantes, vão. É por essa desconexão brutal e óbvia que prédios são tão incríveis, às vezes mais que os habitantes.
No Instagram, uma escritora e médica que sigo lembra que Staying Alive, dos Bee Gees, é uma das músicas mais populares pra realizar ressuscitação cardiopulmonar em pacientes — aka, e vou pesar a mão aqui porque sou escritora e não médica, ressuscitar gente cujo coração parou de bater. Eu já sabia dessa curiosidade porque algum fã de Taylor Swift compartilhou essa matéria no ano passado.
Mas, porque lembrei disso nesse domingo, a luz do sol impiedosa, os pneus escassos suspirando lá fora, um pio de pássaro, uma cidade de prédios sem humanos, penso que a música ressuscita certas coisas, mas não ressuscita ninguém, porque quem tá lá fazendo massagem é um humano, ou um humano ouvindo uma música reproduzida só na sua cabeça, tentando salvar outro humano, tentando fazer uma bateria virar sangue limpo, um silêncio virar barulho por meio de um barulho que mora no silêncio, assim como as cidades, bem, as cidades, nelas nós
São 13h. Ouço vizinhos conversando por perto e os motores já se entrelaçam em um ritmo contínuo, como se coisas pudessem se quebrar em feixes também.
Talvez seja hora de despertar e ir pra rua.
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. A news dela é completamente insubordinada e a Rita escreve torcendo as coisas de um jeito impagável.Só isso por hoje. Bons sonhos!
“Pra escrever, talvez eu precise parar as coisas. Aí eu paro, pego as coisas, jogo pro alto, mudo de lugar, arrasto. Pra escrever, talvez eu precise mover as coisas que estão paradas. Ops.” - isso aqui!!! hshahs