Uma vez, me perguntaram numa entrevista de trabalho que profissão eu teria se eu recebesse um bilhete premiado e pudesse ter qualquer outro trabalho, menos aquele pro qual eu me candidatava. Imagino que essa pergunta supostamente contenha um desafio, um pensa rápido, va-len-do. Mas eu nunca tive momentos tão confortáveis numa entrevista de emprego. Prendi os lábios pra eles não voarem e mandei em menos de três segundos: escritora de ficção.
E me senti escondendo um grande segredo, remando sobre uma Atlântida, porque meu trabalho também é esse, de algum modo, tanto que chamo o outro, o trabalho, de o remunerado.
Mas como chamar de trabalho uma coisa que sequer tenho conseguido fazer?
E por que chamar de trabalho?
E por que fazer uma coisa que sequer tenho conseguido?
E como fazer, uma coisa?
Essa. Coisa. Por quê?
Fiquei pensando na história do bilhete premiado e me perguntando se era isso mesmo o que eu faria. Digo, a gente sempre quer fazer algo que não pode, não consegue, não tem. Não tenho uma rotina de escrita, me sinto um vazio, estou derretendo. Mas quero. Será?
Aí recebo o tal bilhete premiado e não preciso mais me preocupar com um aluguel e nem com um plano de saúde (ruim). Maravilha! O dia todo só acordando, correndo, tomando um bom café da manhã e sentando às nove em frente ao laptop pra escrever, com uma parada pro almoço e expediente de oito horas. Só de escrita. Penso no que dizer quando eu não tiver nada a dizer, na sucessão de palavras modorrentas diante de mim, maduras de tão cheias do meu tempo, caindo dentro do vazio que eu sinto agora, agora mesmo (e por pouco essa newsletter não vai pra vala também): e se o vazio continuar me engolindo, mesmo com o bilhete da sorte?
E se, com tudo, eu revelar a matéria-prima da minha escrita, a minha própria matéria-prima: ?
Uma amiga disse que eu encaro a escrita como um trabalho. E assim, depois de dez, onze horas de trabalho, eu não consigo me entreter escrevendo. As pessoas conseguem. Várias pessoas. É uma questão.
Entretidas ou não, várias pessoas conseguem escrever apesar de muita coisa. Algumas pessoas conseguem escrever apesar de tudo. Carolina Maria de Jesus, por exemplo, escrevia quando tudo o que a sociedade oferecia era um muro simbólico. Sinto como se a aridez áspera do seu texto lixasse fora um pouco da dor da vida vivida, ou a vida que depende de oxigênio, aquela que dá fome, dá raiva. Enfiar isso nas palavras talvez fosse um processo de autopreservação, de desbotamento daquela dor. Das sombras pro papel. No movimento, uma luz, diante dos olhos. Uma vontade intrínseca de existir, porque é isso que fazemos quando vemos a luz. E existir é existir o outro, também.
Talvez eu devesse não trabalhar mesmo, digo, com a escrita. Ou talvez eu não queira dividir a dor, uma dor pequena, mesquinha e branca.
Ou talvez eu só não goste mesmo de escrever.
Essa é uma frase que volta e meia me aparece na cabeça. Talvez o que, de todas as coisas que eu faço, é a coisa que eu faço menos mal, talvez essa seja uma coisa que me custa. Seja uma coisa que não me deixa feliz e realizada imediatamente. Não seja um bolo de chocolate, seja uma garrafa de tequila. Ninguém encara uma garrafa de tequila numa segunda-feira na casa do tio-avô careta. Talvez eu tenha tornado a minha vida a casa do tio-avô careta. Talvez escrever seja como uma espécie de processo, compromisso, obrigação, e o tempo sempre me vença. Talvez eu não saiba fazer isso, compromissos. Talvez as palavras assustem. Talvez sejam muito fracas. Talvez não me comovam, as minhas. Talvez falte outro demais no que faço. Ou talvez tenha outro demais. E aí eu cuide, torcendo pra que esteja tudo bem, sem saber se está.
É preciso um processo também pra relaxar escrevendo, me falam. É treinar. Certo. Estou aqui. E até agora, tudo bem. Quando faço uma curva, termino uma frase, meu coração acelera, mas continuo. Quando eu era repórter, eu lembro do inferno que era apurar uma manchete de domingo, mas eu passava lá na banca de jornal perto de casa, no domingo, e olhava pra manchete, as letras ali, sempre as mesmas fontes, mas diferentes, eu olhava pra serifa no sobrenome da minha avó, da minha mãe, o sobrenome era o mesmo, eu olhava pra serifa no sobrenome e pensava que o cansaço talvez não valesse a pena, que o trabalho talvez não valesse a pena, que o jornal talvez não valesse a pena, mas que a serifa no nome, sim, ela sim explicava tudo.
Eu penso por que fazer isso se me mandam chamar um massacre de operação policial. Por que fazer isso se há um massacre. Por que fazer isso se estão querendo construir um resort pra gringo na Faixa de Gaza. Pra que fazer isso se 2026 tá aí e tem até cantor de sertanejo e o povo tá caindo na porrada na internet por qualquer coisa e tem gente querendo perfurar poço de petróleo e o incêndio em Los Angeles no Pantanal e tem mulher sendo transferida a força pra penitenciária cheia de homem pra sentir dor dor dor, e do que adianta falar alguma coisa se não é pra falar dessa dor que entope as artérias do mundo, mas ele segue, ele segue carregando cada uma das suas hemácias, inúteis, hemácias que se acham um corpo inteiro e acham que têm direito a um respiro.
Talvez eu fosse extremamente infeliz escrevendo. Talvez eu odeie mesmo escrever, do mesmo jeito que eu odeio meu queixo. Mas ainda preciso dele, quero ele, o meu queixo, comigo (só que sem a acne hormonal).
Passo, com o corte seco de quem quer encerrar o expediente LL, a Elvira Vigna: “As coisas ditas sem ordem, e essa frase nem é muito boa. Não é que sejam ditas sem ordem, já que algo que não tem ordem é julgado a partir da existência suposta de uma ordem, que então estaria ausente”.
Sendo assim, talvez eu goste de escrever, mesmo não gostando. E é possível que, mesmo com o bilhete premiado, o mundo continue acabando todos os dias.
Quando a gente começa a beber a garrafa de tequila, ainda que seja uma segunda-feira e o tio-avô chato esteja ao lado reclamando, o mundo ganha uma espécie de luz. E a gente quer continuar bebendo. E aí, a gente bebe.
Se você quer apoiar o não remunerado, vem aqui ou aqui.
No mais, um bom fim de semana, sem trabalhos (remunerados).
Até março!
talvez voce nao goste de escrever, mas eu certamente gosto de ler. E talvez voce goste de ser lida e esteja aí a explicação. :)
Eu penso muito nisso. Como gostar de uma coisa que nos custa tanto? Será que eu escreveria feliz se todos os problemas estivessem resolvidos ou estaria muito ocupada me divertindo em viagens e outros luxos? Talvez eu tenha escolhido a escrita porque era uma forma barata de realizar desejos mas esteja tão cansada da rotina que nem ligue mais pra essa satisfação pequena. Vou ficar pensando nisso...