Que vida.
Que tempo.
O que eu senti. Ali. Foi.
- Ali Smith, Hotel Mundo
Corro (devagar) em uma pista perto da minha casa, quase todos os dias. Aos fins de semana, especialmente aos domingos, a pista fica apinhada de crianças. Uma das coisas dos domingos, além da melancolia imemorial, é esse fora-do-lugar que me faz percorrer mais as pessoas. A outra coisa, derivada, é fazer uma espécie de cara ou coroa com as crianças.
Porque as crianças sempre estão caindo. Aprendendo e caindo. A andar. A andar de bicicleta, de patins. E aí tem sempre a hora da queda. Eu me deparo com várias, ao longo de um domingo. E sempre sou fisgada pelo suspense: como será que essa criança volta da queda?
Funciona assim: ela cai. Ela fica no chão. Daí, uma pausa. Criança e chão e uma expressão ilegível, imprevisível. Eu suspensa ali, diminuindo o passo. Aí a criança reage de uma das duas maneiras possíveis:
1 ) Terminada a pausa, que pode levar anos dentro de uns segundos, a criança levanta, bota seu veículo de pé e olha pros pais ou acompanhantes. Tem o corpinho plenamente funcional. Pode ser que sorria. Pode ser que tenha uma cara imperturbável. Mas simplesmente segue, como se nada tivesse acontecido. Próximo.
2) A criança olha pro acompanhante. Sua expressão é de absoluto horror. A criança, então, chora. Chora muito. O acompanhante vai atrás levanta a criança, ela parece íntegra do ponto de vista fisiológico. Mas aí a criança chora. O resto eu não sei, porque meus passos deixam o choro pra trás.
Sempre me pergunto se as crianças que seguem em frente numa boa já choraram muito — e só por isso, aprenderam a seguir em frente. Me pergunto o que eu fazia quando caía de bicicleta. Quando caía. Lembro de uma vez, aos doze (nem mais criança), em que caí na quadra áspera da escola e fui deslizando naquela espécie de lixa mal pintada, e quando levantei senti o ardor e vi os cotovelos e joelhos sangrando. Mas tudo se movendo. Tá. Falei: vou no departamento médico. Fui. Estudei em uma escola pública que até tinha dinheiro, mas aparentemente torrava todo o custeio pintando muro. Por isso, não tinha band-aid suficiente na salinha médica. Ah, tá bom. Coloquei nos machucados uns poucos lenços que eu levava na mochila (era a época de ouro dos resfriados) e eles começaram a chupar meu sangue. Fui sacaneada pelos amiguinhos, rimos muito. As feridas latejavam, mas a queda não doeu. Ao menos não no fundo da minha memória.
Hoje, me sinto um pouco a criança do grupo dois. Não por olhar pros pais, mas por sentir, expressar essa dor. Pelo desamparo que vem à tona nas conversas. O que aconteceu? Foi o algoritmo? É um mal da geração? Foi falta de queda no passado? Será que gastei poucas lágrimas enquanto ainda era permitido receber abraços e beijinhos, assistir a um desenho depois da aula pra curar? Ou, em algum momento, aprendi a não cair, descobri que era bom, que eu era melhor fazendo uma prova de geografia que jogando vôlei, e passei a evitar a dor? Mas a dor é inevitável, e hoje a prova de geografia, sua figura simbólica, dói. Hoje eu não vou mais bem nas provas, e me sinto presa à gravidade de uma quadra, ralando os joelhos, jogando geografia num grupo de bicicletas, errando o chute com as mãos e torcendo os ovários nesse movimento desastrado. É mais ou menos assim.
A criança do grupo dois talvez nem chore pela dor, mas pelo percurso da queda. Por esse voo imprevisível que pode terminar com um braço quebrado ou com um mísero arranhãozinho. Pela fratura de realidade que experimenta, mesmo com ossos íntegros. E aí, ela precisa convocar o olhar do outro. Pra se provar que ainda é. É, como antes da queda. Que não foi pro espaço também.
Mas talvez, tenha ido. Mesmo quando voltamos, sempre já fomos.
Outro dia, a caminho da sessão de terapia, me distraí com emails de trabalho, tropecei num desnível da calçada e caí. Ralei bastante o joelho e virei o pé. Uma pessoa me perguntou se eu precisava de ajuda, e senti que o que mais me machucou foi isso, a pergunta. A pergunta que atravessava a minha tentativa de estabilização rápida, interrompia meu foco total em entender se estava tudo bem, se dava pra andar com o pé, se dava pra dobrar o joelho. E antes mesmo de entender tudo isso, eu disse não, não, obrigada, que saíram meio tapa a caminho de um rosto, apesar das palavras teoricamente gentis.
Uhuuuuuuuuu-
-huuuuuuuuu que queda que voo que salto que tombo nas trevas na luz que mergulho que lufada que baque que impacto que altura que loucura que manobra que pavor e que gaita sem foles sem fôlego (…)
Assim Ali Smith começa Hotel Mundo (li na tradução do Caetano Galindo, pra Companhia das Letras), tentando produzir numa linguagem própria a experiência da queda — nesse caso, uma queda da qual não se volta. Nesse início, a gente se depara com uma tentativa, sempre falha mas sempre interessante, de apalavrar essa fratura de mundo, esse fora da lógica. Não fomos feitos pra cair o tempo todo, sabemos. Tudo se dissolve quando isso acontece. O mais assustador em uma queda é que nos falta por instantes o futuro, ou seja, a próxima palavra, ou seja, linguagem, ou seja,
é quase um deslumbramento horrível.
Comecei a sessão revoltada porque sabia que eu meu joelho viraríamos piada, além de mancha de sangue no vestido novinho. Terminei ouvindo um: talvez você esteja insistindo em um caminho que só te faz cair.
Mas penso que foi atrás dos refrescos que não aprendi, por exemplo, a andar de patins quando era mais nova. Ou não: eu só entrei na idade em que passamos a evitar a queda. Em que uma fratura é um problema real, com implicações reais, tipo faltar aulas e não passar no concurso pra escola pública que é ótima apesar de ficar de negar curativos. Ou ainda: eu só aprendi que existiam modalidades em que eu não cairia com tanta frequência. Tipo provas de geografia. Tipo escrever redações.
Ou ainda mais: eu aprendi que cair não dói se você é dono das leis da gravidade. O problema: na vida vivida, ao contrário dos romances, a gente não é dono de nada. E por não sermos, o tempo age dessa forma, dissuadindo cada vez mais as possíveis quedas, ao mesmo tempo em que nos aproxima cada vez mais do chão.
É por isso, por exemplo, que existem aulas que ensinam idosos a cair numa boa. Na Yoga, uma série de técnicas e movimentos impedem que quedas inevitáveis terminem em lesões sérias. No Judô, Ukemi é uma técnica pra distribuir e dividir o impacto na hora de cair e aparentemente significa “receber o corpo”. É sabido também que flexionar as pernas ajuda a evitar machucados reduzindo a altura de onde você despenca, e que, quanto mais relaxados os músculos do corpo, menor a chance de danos. Cair, portanto, é uma espécie de uma arte no mais completo dos sentidos: é um assombro, é técnica, é coisa séria, mas é também resultado de uma atividade na qual queremos insistir. Seja essa atividade uma luta, uma prática ou só mesmo a própria vida.
O que me traz de volta às crianças que sabem cair. Talvez elas já tenham maturidade suficiente pra gostar muito de brincar, a ponto de querer só continuar, de não perder o próximo segundo, ainda que ele quase tenha sido suspenso há alguns segundos.
Quase: talvez saber cair seja se dispor a atravessar essa ponte. Mesmo com o joelho ralado.

Por falar em cair:
Ainda não consegui ler o romance novo da Julia Codo, mas gosto pra caramba do primeiro livro dela, de contos, um besouro chamado Você não vai dizer nada. Lembrei particularmente de um chamado Golden Gate enquanto pensava nessa edição. Só caiam dentro (desculpa).
Se você gosta de todas as coisas docemente estranhas que aparecem por aqui, faça um favor a si mesmo e leia a poeta Thais Campolina. O último livro dela, Estado Febril, saiu numa edição linda da bravíssima Macabea Edições, é de uma arquitetura preciosa e tem algumas (várias?) quedas — coincidência ou não, estão dentro delas as construções que mais me derrubaram.
É isso? Então é isso. Até a próxima edição.
Que observação mais Carina! Amei. Falando especificamente da queda das crianças, acredito que a reação dos adultos as ensina a reagir. Ou ensina a pior reação possível, como é o caso das crianças-futuros-adultos que escondem a dor por receio de incomodar ou levar bronca.
Seu texto sempre "cai bem" por aqui ❤️