#2: Cachaça e água
Minha avó sabia sorrir as coisas, mas talvez caiba a mim colocá-las em prática sozinha
No último domingo, enquanto me despedia do Carnaval de rua em um último bloco, comecei a cantar “Cachaça não é água” de olhos fechados, percorrendo cada verso. Abri os olhos e me surpreendi com meu entorno fazendo qualquer coisa que não fosse cantá-la: virando seus latões de cerveja, conversando, apenas de lábios unidos em silêncio e tudo mais.
Eu sempre tive a noção equivocada de que essa era a marchinha mais famosa de todos os tempos (talvez atrás do “Abre alas” de Chiquinha Gonzaga), mas de repente me dei conta que não. “Cachaça não é água” era simplesmente uma música que minha avó paterna cantava com frequência quando, na alta minha infância, brincávamos juntas, no chão da minha sala. A letra é assim:
Você pensa que cachaça é água?
Cachaça não é água, não
Cachaça vem do alambique
E água vem do ribeirão
Pode me faltar tudo na vida
Arroz, feijão e pão
Pode me faltar manteiga
E tudo mais não faz falta, não
Bom, e aí vem o perigo (a segunda parte):
Pode me faltar o amor
Disso eu até acho graça
Só não quero que me falte
A danada da cachaça
Lembro que minha avó, uma senhora muito católica, costumava emendar a canção numa gargalhada longa, sonora. Caramba. De repente eu me choco pensando que essa gargalhada honesta ocupa, totalitária, a minha atual definição de felicidade.
Felicidade não é exatamente um conceito acessível para as mulheres da minha família, com vidas marcadas por dores, perdas e privações. Se eu quisesse fazer boa literatura aqui, falaria mais disso para sair desse campo do genérico, mas não é o caso dessa newsletter. Mas, dito isso, me dou conta de quão estranho era que ela cantasse - para uma criança! - que cachaça não é água e que o amor pode explodir mesmo, mas a cachaça tem que estar lá no copo.
Cresci com essa música na cabeça, mas também só reparei que ela talvez não pertencesse à vida corrente da minha avó outro dia. Por ser uma marchinha, talvez a predileção pela cachaça fosse um daqueles pecados restritos ao Carnaval. Será que as mulheres do bloco podiam cantar a troca do amor pela cachaça? Será que isso era ok? Será que minha avó cantava a marchinha em público? Será que, por ouvi-la tantas vezes fora do Carnaval, eu acreditei que ela fosse uma historinha possível de um(a) cachaceiro(a) fora das quatro linhas do sábado à terça?
A cachaça que não é água eu bebo até hoje com o sorriso da avó - que, por uma série de questões, só faz sofrer mais a cada dia. Mas penso se ela conheceu a cachaça fora dos versos, a cachaça que eu bebi tantas vezes nesses e nos outros dias do ano. E penso que, caramba, uma mulher feliz e que se guia apenas pela própria felicidade é uma coisa de louco. É um pecado mortal até hoje.
As estruturas como se colocam, apesar de tanta evolução, ainda são feitas para, se não minar, restringir nossa felicidade às instâncias em que são úteis (aka criar filhos). O casamento é muitas vezes uma carga de obrigações desproporcional para mulheres, a maternidade ainda é solo (e compulsória) para uma boa parte de nós e eu quero que atire o primeiro copinho de cachaça aqui quem nunca foi abandonada ou descartada por ser, ou tentar ser, uma mulher feliz. Seja pela família, pelo parceiro, por amigos etc.
Cecilia Pavón, a escritora Argentina, questionou na última Flip a noção de que um relacionamento romântico e suas consequências são a busca última na vida de uma mulher, e que o mundo pós-machista deveria ser um mundo refundado da poeira de uma explosão, tal e qual este universo. Quase sempre é assim: somos criadas para achar um par que valide nossa beleza e nossa personalidade. Para criar uma casa. Filhos. Adquirir obrigações desiguais. Cumpri-las com afinco. Somos criadas para as gargalhadas breves e desaguadas em culpa. E se não fosse assim? E se o compromisso último de uma mulher fosse com sua própria cachaça, aquilo que a faça mais feliz que as águas socialmente límpidas do amor romântico?
Não sei quanto tempo a dor permitiu durar a gargalhada mais longa da minha avó. Mas eu estou trabalhando firme para morar dentro dela. No meio das penitências e renúncias das mulheres da minha família, tentar uma vida norteada pelo prazer é tão difícil. Nossa, como é difícil. Outro dia, ouvi dela mesma que estava ficando cada dia mais feia com as tatuagens. E sorri em resposta porque que quero essa feiura. Vovó, ela me faz feliz. Você me ensinou a marchinha e me ensinou sem querer que pode me faltar o amor, mas não a cachaça. E que ouvir sua gargalhada é uma das coisas mais gostosas do mundo. Agora eu quero morar dentro dela. Será que posso? Será que consigo? Enquanto isso, vou vivendo (e morrendo) abraçada à minha cachaça. Você sabe qual é, eu faço tudo o que posso para tocá-la, abraçá-la, tê-la como uma filha. Ela é mais importante que uma família que nasce de mim. Outras coisas podem nascer de mim, vó. Já estão nascendo. Feias como eu e minhas tatuagens, mas estão. Acredite.