“Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo” — Clarice Lispector
Esse texto começou a ser escrito junto com o meu primeiro livro: há trinta e um anos. Mais ou menos quando começou também o segundo, que nunca existirá até que um dia, quem sabe, existiu. Mas vejam. Isso aqui teoricamente é um email, vocês não têm a vida toda e nem eu. É preciso um recorte, é sempre preciso um recorte e essa tesoura fecha numa madrugada do início de maio, na borda de um balão verde no WhatsApp onde há uma única frase:
Eu só queria ser uma pessoa.
Quem recebe é um amigo. Que já, mas hoje um grande amigo — jamais usarei a palavra só. Ele provoca: por que então você não escreve sobre isso?
Na pergunta, no gesto da pergunta, está contido o exato significado do que é ser uma pessoa. É o que tanto busco, o gesto, há semanas. Mas uma pessoa não se constitui assim, só no próprio desejo.
Obedeço, e começo a escrever imediatamente.
É preciso que se se esclareça o que é ser uma pessoa, mas isso jamais será esclarecido. Pelo menos não aqui. Eu sei que tenho um corpo. As pessoas encostam no meu corpo, elas sabem disso: um corpo existe e ele é meu. Elas sabem também das histórias daquela que ocupa o corpo. Enfim, podem vir a saber. Tenho muitas. Tenho por enquanto: corpo e histórias.
As pessoas, no entanto, não conseguem saber que eu sou uma pessoa. Se eu sou uma pessoa. Isso elas desconhecem. E eu sofro, porque às vezes eu também não consigo. Me sinto uma personagem, uma voz inventada de propósito. As pessoas podem fechar o livro e acabar comigo.
Isso sempre foi uma questão aqui, desde que o corpo é corpo.
Cresci em uma família maravilhosa e tive muito amor. Mas uma família do subúrbio um tanto quanto conservadora. Era de bom tom evitar aquelas músicas de roqueiro que injeta heroína. Aqueles filmes com morte e violência e nudez e drogas e muitasoutrascoisas. Aquela galera da Tropicália, um bando de fumados. Tudo o aquilo do mundo. Enquanto isso, Padre Marcelo Rossi erguia as mãos no carro em loop.
Nessa época, eu via Rita Lee na TV. Nos dominicais, no falecido Domingão do Faustão, sei lá. Rita Lee ainda estava viva quando comecei a escrever esse texto. Dois dias antes da sua morte, fui correr no Aterro do Flamengo e tive a presença de espírito de montar uma playlist com minhas músicas favoritas da Rita Lee. Senti que algo poderia acontecer em breve, ela parecia muito fraca nas poucas fotos do Instagram. Eu não entendo nada de música, mas eu sempre amei ouvir Rita Lee.
Em alguns domingos cerimoniosos, perdíamos os programas de TV pra passear no Barra Shopping. O caminho até a Barra era bem longo. Por isso, o CD do Padre Marcelo ficava meio saturante até pros meus pais, e podíamos então ouvir JB FM. Devo tudo o que sei à JB FM. A JB FM volta e meia tacava Ovelha Negra na programação. Apesar do conteúdo da música, ninguém mudava de estação. Eu fechava os olhos, e podia dizer que era pra não enjoar nas curvas do Alto da Boa Vista, mas era pra descansar em Ovelha Negra. No fundo, a gente sempre sabe que. É só uma questão de tempo. Ovelha Negra era uma música onde meus pulmões enchiam melhor. Ainda enchem.
No domingo antes de Rita morrer, comecei a correr com Ovelha Negra. As curvas suaves do Aterro as curvas fechadas do Alto. Mais ar que antes.
Gosto de curvas.
Rita Lee nos dominicais era muito uma pessoa. Aquela cinquentona ruivassa, falando um monte de merda, cantando amor sexo tesão desculpa o auê lança perfume. Eu queria ser ruiva. Eu também queria ser uma pessoa, como a Rita, mas o que eu era? Do que eu gostava? O que eu sabia fazer? O que sei sobre isso, sobre mim? Eu era uma tigela rasa recém-lavada onde quer que eu fosse. Eu não tinha nada, não sabia nada. Não tinha favoritos e nem ídolos, porque ter ídolos é feio, é feio cultuar pessoas, diziam. Pessoas são feias. Eu apenas me chamava Carina lia livros tirava notas ótimas tinha 10 anos. Meu nome quer dizer graciosa (bonita), mas a revista de nomes que minha mãe consultou traduziu mal pra agraciada e ela inferiu que fosse por Deus. Deus entrou na minha vida numa imensa suposição. Carina é agraciada por porra nenhuma, é só bonita mesmo.
Mas eu mesma só comecei a me achar um pouco bonita com 30 anos, e tomadas aí várias licenças poéticas. A beleza, no entanto, não me faz uma pessoa, não me fará. Rita tampouco era bonita quando a via na TV. A beleza não grita se quebrarem meu braço. A beleza não chora diante de um silêncio que come carne humana. A beleza não tem nada na curva fechada dos olhos, naquele canto de nós que não pode ser enxergado e nem exatamente descrito, mas que as pessoas conseguem ver com propriedade — só em outras pessoas.
Me falavam em casa que a Rita Lee só cantava besteira, era feia, uma velha doida. Não sabiam nada sobre Rita Lee. Eu também não sabia o que era ser uma pessoa.
Uma pessoa só existe quando iluminada. Só se ilumina quando chega luz. Só chega luz quando rachaduras já abriram buracos. E escuridão à espreita.
Talvez por todas essas restrições culturais e pela minha evidente falta de informação, só ganhei meu primeiro CD aos 12 anos. Foi o Let Go, o primeiro também da Avril Lavigne — como cantora. Avril também me parecia muito uma pessoa: diferente do mainstream das divas pop, ela usava calças largas como os homens, tinha uma banda só com homens, cantava gritando e ainda tinha um rosto de bonequinha. Tudo aquilo parecia muito legal e eu ouvia Avril nas festinhas de aniversário, nunca no carro, e achava incrível. Achava I’m with you muito triste também, apesar de não ser minha música favorita do CD. Eu não recebia mesada, então precisei pedi-lo de presente à minha mãe. Com alguma ênfase. Argumentei que eu tinha 12 anos, que todas as minhas amigas já tinham vários CDs e eu não tinha nenhum. Chegamos na loja de CDs e eu apontei pro que eu queria, e expliquei que a Avril era uma moça que, apesar de muito roqueira, era também muito católica, e cantava num coral de igreja. Eu gostaria muito de lembrar da cara do atendente ou da atendente, se eu fosse capaz de lembrar de alguma coisa além do nervosismo fritando a minha pele durante a execução perfeita daquele discurso ensaiado.
A minha música favorita desse CD da Avril era Mobile. É pouco conhecida, nunca foi um hit ou música de trabalho. Eu gosto dela até hoje, sendo bastante sincera, mesmo que ela não seja nem perto de boa. Com tanta coisa na vida é assim, enfim. Eis o refrão:
Everything's changing
When I turn around
All out of my control
I'm a mobile
Uma amiga minha, uma das minhas melhores amigas, também amava Mobile. Quando ela se mudou do Rio, no meio da pandemia, fui a pé até a quase ex-casa dela pra evitar qualquer risco. Estávamos ambas isoladas, levando o pânico a sério. Eu tinha acabado de voltar de Lisboa e morava em Copacabana, ela no Leme. Cheguei, sentamos no sofá de uma sala em processo de empacotamento. Contei do livro que eu estava reescrevendo e senti aquilo que sinto com pessoas, porque apesar de não saber se sou uma pessoa, acho que vocês perceberam, eu sou fascinada por elas. Aquele foguete que sobe no útero no estômago no esôfago, sei lá. A intuição de que algo imenso acontece quando o outro é um barco que te tira das águas. Você sobe molhado e passando vergonha, mas está ali uma superfície. Estar ali. Um barco é feito um planeta boiando no universo.
Tomamos todo o vinho que levei. E a outra garrafa de vinho que pedimos no Ifood. Ainda queríamos beber. Era domingo. Abrimos uma garrafa de vodca esquecida na geladeira dela. Fomos pro quarto, ainda intacto, e colocamos Mobile no último volume da caixinha de som. Eu soube na hora que me lembraria disso hoje, que me lembrarei disso amanhã. Pulamos deitadas na cama feito panquecas na frigideira e cantamos mais alto que o volume mais alto, rodeadas pela casa que também gritava a iminência do fim. Éramos crianças. Quando gosto de alguém, e disse isso outro dia mesmo, quero desdobrar essa pessoa no tempo. Quero a sua infância e a sua velhice. Não exatamente vivê-la, mas vê-la. Quero que ela também invada todos os meus tempos verbais, que a memória mais antiga dela esteja na minha primeira memória. Uma vida que inunda outra vida. É comum que eu sonhe com pessoas que amo mais velhas. Em reencontros daqui a 20, 30 anos. Nossos sorrisos enrugados ou cheios de botox.
A minha angústia em querer tanto ser uma pessoa é exatamente essa: eu sinto que, agora agora, fora de mim, eu existo só no presente.
Esbarro, nessa busca, em O ovo e a galinha, conto da Clarice Lispector que li aos 16 anos. Esbarro porque ser uma pessoa é ser o ovo. Não é ser inteligente, legal, divertida, ler os russos, usar camisa de banda ou coisa que o valha. É ir além: ser o ovo, só. E o ovo só existe quando alguém vê o ovo. Quer dizer, não há garantias da existência do ovo. O ovo apenas é visto. É visto, e isso é tão grandioso que coloca o universo de joelhos, temente a. Não há palavra que defina o que é ser uma pessoa. Nunca haverá. Nem cem mil. Ser uma pessoa é ser uma pessoa — e isso não diz nada. Ser uma pessoa é roubar todas as palavras. Devolvê-las, mas em forma de roupas. De bichos. De cores. De camisinhas. De qualquer coisa que não seja o que é. Achar a palavra pra isso é colocar as mãos muito perto de uma fonte de fogo, sentir o calor, jamais tocar o fogo. Mas crer, por um instante, que somos donos da chama, que aquele calor emana de nossas mãos e não o contrário. Às vezes um delírio é o mais próximo que se chega da verdade.
Mas não tenho certeza. Não tenho certeza de nada: sei apenas que sou burra, muito burra. Disso, realmente sei.
Sou burra, sim. Mas não digo isso com pesar nem nada. Ser burra me faz viver mais. Eu gosto muito de viver, por muito tempo tive medo de não conseguir viver. Me senti muito burra lendo Clarice pela primeira vez aos 15 anos. Passávamos horas na sala discutindo um mísero parágrafo, a cosmogonia, o amor e a morte. Letras juntas, uma linguagem. Cacete.
Fiquei fascinada por ser tão burra. Pela possibilidade de ler um conto três vezes e ainda não saber. E pior: descobrir. Mas ainda assim, não saber. Uma obra inteira. Várias obras. Descobrir - não saber - descobrir - não saber - descobrir - não saber. Se a eternidade não for isso, não sei o que a eternidade é. Isso parece óbvio, mas. Quero morrer burra, morrer burra é a melhor chance que tenho.
Talvez eu seja o deus com quem meu nome sonha. Mas não, nunca terei como saber. Sou burra.
Intuo que amar é consentir a própria burrice em relação a alguém. Descobrir - não saber.
Os homens quase nunca amam.
Devolvi o texto ao meu amigo em uns 30 minutos. Não era nenhum desses textos. Esses textos eu escrevi porque nenhum texto jamais me fará. Então, continuo. Escrevendo, angustiada, vivendo, escolha um nome. O texto que entreguei em 30 minutos tinha um formato estranho, ele era estranho, não sei dizer o que ele era. Estrutura de poema só em uma parte pequena de cada parágrafo, um poema frágil e partido em quatro, esmagado por uma prosa pesada. Mas eu gostei do texto. Meu amigo também, parece. No final, ele respondeu assim:
Você é um monstro.
E então fui dormir com o meu tórax dançando.
Tava com saudades disso aqui!
Vocês podem estar se perguntando o que eu fiz nas minhas férias. Eu também estou me perguntando. Mas saibam que entre essas coisas não esteve terminar um livro. Fuen.
Por outro lado, tirei lindíssimas fotos de céu, quase todos os dias. Isso eu fiz.
Estou escrevendo sobre a noite — entre outras coisas. Acho que eu precisava de um tempo pra me reconciliar com ela. Vê-la nascer colorida da janela. Acreditar que o fim da luz é também a esperança da luz. Acreditar.
E as noites têm sim sido ótimas.
A noite de hoje, dia 21 de junho, é a mais longa do ano. Eu adoro a noite mais longa do ano porque, depois dela, sempre teremos mais sol.
Sejam bem burros e burras na Maior das Noites.
Beijos e até a próxima!
Que coisa linda ⚡️
Baita texto bomm!