“às vezes sim me ocorre encontrar
uma palavra
apenas quando a encontro
ela se parece com um buraco
cheio de silêncio”
- Ana Martins Marques
Algumas coisas aconteceram essa semana. Entre elas:
Voltei a escrever páginas e páginas.
Me vi em uma foto e achei meus dentes bonitos, tão bonitos.
Muitas outras coisas aconteceram. Todas ruins. Talvez seja por isso que.
Mas, de tudo o que me aconteceu, não consigo esquecer é dos dentes. O triunfo dos dentes, brancos pela ilusão da noite, fortes, quase uniformes, me atirou em uma esperança racional em relação a todo o resto. Se falarmos do que não é racional, aí fodeu.
A esperança às vezes é uma prova do ensino fundamental. É preciso fazer cálculos, passar de ano. Ainda que odiemos os cálculos. Passar de ano é se livrar de mais uma fração de vida horrível, da adolescência. Ter esperança. Fazer cálculos até estar livre dos cálculos.
Aviso de antemão que essa newsletter não vai ser ótima. Nem boa.
Explico: uma tristeza ainda está de pé.
Quando a tristeza senta, tudo é mais fácil. Ela senta, a gente conversa. Bebe um negócio. Anoto umas palavras.
Enquanto não há palavras, sobram apenas dentes.
Os dentes. Eles já me causaram muitos problemas.
Dois mil e vinte. Lockdown e pandemia, morando longe do Rio. E assim, numa sexta-feira insuspeita, descobri:
eu tenho dentes.
Descobrir que se tem dentes, e não que os dentes são qualquer coisa minha, eternos como a própria fantasia que dá sentido à vida, faz a diferença.
Ter dentes significa perdê-los. Como coisas outras. Já tive muitas e fui perdendo, uma a uma.
Eu, de fato, já perdi um dente. Permanente. Não era um siso.
Não fiz isso bêbada andando de bicicleta. Nem brigando na rua. A morte precoce desse dente não rende nem um microconto razoável.
Simplesmente fui na dentista e a moça disse: seu dente está rachado.
Radiografou e disse: é, tá mesmo. Do esmalte até a raiz. Tem que tirar tudo.
Eu tinha 24 anos. Como assim, perder um dente? JÁ? Sem causa, sem explicação? Um dente útil, que deveria estar ali, que foi feito pra estar ali. Eu precisaria implantar uma porcelana tosca, atochada num parafuso, gastando mais de um salário inteiro nessa operação tapa-buraco.
Gastei. Foi nesse dia, o do implante, que inaugurei uma pequena paranoia, pequena mesmo, com a condição dos meus dentes.
Em 2020, ela deixou de ser pequena.
Fui em uma consulta de rotina numa dentista. Eu não a conhecia.
Portugueses amam radiogafias. Ela me tirou uma. Dos dentes.
E anunciou com preocupação que um dos meus dentes estava tomado por uma mancha escura. Que precisaria fazer um canal “pra tentar salvar alguma coisa”.
Um enorme senso de injustiça deitou em cima de mim na cadeira, abraçado a uma bigorna. COMO ASSIM? Eu, que passava fio dental duas vezes por dia. Seis em seis meses no dentista. O medo de perder os dentes. E lá iria mais um. Quer dizer, com sorte não iria. Mas um pedaço dele. Um pedaço grande. Mais um pedaço do meu corpo. Mais um salário. NÃO NÃO NÃO.
Disse a ela que marcaríamos de ver isso depois. Voltei pra casa arrasada.
Perder pedaços do corpo. Penso na escala que faz isso uma tragédia.
O meu cabelo cai muito. Ninguém liga pra isso.
Tenho também as unhas curtas. E vou na depilação de duas em duas semanas, porque sou condicionada pelo patriarcado.
Quando fico com homens, eu perco muito cabelo. Eles gostam de segurar o meu cabelo com uma força anormal.
Parem de segurar o meu cabelo desse jeito.
Os homens com quem eu fiquei num passado recente não leem essa newsletter. Esse, portanto, é um pedido inútil.
(mas parem)
Enquanto escrevo essa news, faz um frio descomunal no Rio. Precisei ir no mercado da esquina e percebi: está foda. “Tá foda” veste todas sensações que fazem uma rodinha punk no meu corpo.
O mercado 24 horas na hora 23 reúne almas penadas. Jovens relapsos. Os funcionários do mercado, em fim de turno. Marombeiros que saem da academia direto pras compras.
Eu queria ser marombeira. Em vez disso, escrevo. Isso me deixa mais triste e mais flácida, quem sabe.
Isso explica muita coisa sobre mim.
Olho pras maçãs, perto do caixa. Lembro.
Dos dentes.
Maçãs não são flácidas. Elas são melhores que eu.
Eu sempre tive medo de perder um dente mordendo uma maçã. Talvez esse seja um sentimento comum. Talvez seja por isso que as pessoas cortem maçãs. Apesar dos dentes.
E tem gente que acha que eu sou corajosa.
Fui em vários dentistas. Muitas consultas. Eu tinha um plano de saúde que cobria isso, na época.
O fato é que, na primeira delas, o diagnóstico foi: seu dente está perfeito. A radiografia está borrada.
Fizemos outra. Estava mesmo, ufa.
Mas. A ideia de perder o dente vai embora mais devagar que uma radiografia. Mais devagar que o próprio dente.
O meu dente, o que perdi aos 24 anos, foi arrancado em 10 minutos.
Eu queria que tudo o que tivesse que terminar fosse arrancado em 10 minutos. Mesmo.
O problema é que o término é uma grande ficção. A continuidade também é uma ficção. Um nunca vence completamente o outro. Resta uma guerra de trincheiras.
O problema, também, é que alguns escrevem, mas todos criam. Ninguém vive sem criar. Sem escrever, eu conseguiria viver perfeitamente. Escrever me faz mal. Meus dentes, em algum momento, também fizeram.
Nos meses seguintes àquele borrão apocalíptico na chapa, eu passei a escovar os dentes cinco vezes por dia. Fio dental. Ficava olhando no espelho. Os dentes. Até descobrir algum defeito, algum indício que me colocasse de novo na rota. De risco. De perder os dentes.
O rolo da câmera do meu celular era uma coleção de fotos da arcada. Várias delas. Com boa iluminação, pra encontrar os defeitos.
Até que um dia descobri uma fissurinha nos dentes da frente. Nos dois. Essa fissurinha provavelmente estava em ambos há uns 20 anos. Mas a gente só descobre as fissuras quando se dá conta do que foi fissurado.
É possível conviver muito bem com essas fissuras - me disse outro dentista, em outra consulta. Seus dentes da frente nunca vão quebrar por causa disso.
Acreditei por vinte minutos. Saí da clínica com a leveza de uma fuligem. Mas. Não demorou pra que eu voltasse às fotos. E às sentenças nos espelhos.
Tem dias que tudo vai embora. Tudo.
Aí ficamos sozinhas, um buraco em torno da palavra que queremos nos dizer, mas ainda não sabemos que palavra é essa.
Meus dentes estão bonitos na foto, mas eu me sinto horrível.
Sorrir parece uma utopia. Um livro pornô de Kindle. Um participante de Casamento às Cegas. Tudo o que esbarra no absurdo.
Todas as folhas da planta que eu tinha em casa caíram. Só restou uma.
Eu fiz o melhor por essa planta. Reguei, mudei de posição no inverno.
Ainda assim, as folhas caem. Caíram todas.
Eu falhei com as folhas assim como falhei com os dentes.
A planta. Eu comprei a planta quando o sol ainda era quente. Início de março. Tudo prosperava, menos a escrita. Tempo bom.
Comprei a planta porque estava conversando com uma pessoa num app. Falávamos de plantas. Fui no Largo do Machado pensando nela, pensando em mim. Que ter mais uma planta me faria bem. Tudo prosperava, eu já disse. Correção: nada podia prosperar. Penso que até as pessoas com quem não quero manter contato, que eventualmente beijam babando e tudo mais, entram de uma forma igualmente violenta na minha vida. Aqui estou eu, chorando pela planta que sementeou uma só noite, mas que faz parte da minha vida há meses.
Essa planta, assim como eu e você, vai morrer.
Quando falo você, falo nessa instância de morte iminente. Sim, você. Que está lendo. Você só existe enquanto os seus olhos aqui. Enquanto você está no enquanto, e no logo depois dele. Depois que você terminar esse texto, você vai terminar. Você, esse raio que viaja do céu à terra, terá cumprido o seu destino. Você será ele. Ou ela. Ou elu. Você não será mais você. O nosso diálogo, ele terá terminado. Ficará em você tudo aquilo que não termina. Em mim, não vai ficar nada. Eu sou a autora desse texto. No máximo, a possibilidade de você. A possibilidade de você é o que me faz escrever. Se não houvesse nenhuma possibilidade de você, não haveria a minha escrita. Eu escrevo porque gosto de abrir as janelas. Abrir janelas é perigoso.
A possibilidade de você pode ser mais poderosa que você.
Passei meses e meses inventariando meus dentes. Não só: às vezes, acordava no meio da noite com dor na mandíbula, nos dentes. Novas consultas, mas: não era bruxismo. Não era, não era. Segui com os espelhos, as dores. Meses, eu disse. Mas o comércio reaberto, a possibilidade de voltar às distrações. Mais elementos pra que houvesse palavra, palavras. Não precisei mais tanto dos dentes pra me manter viva. Pouco a pouco, menos e menos.
Eu mesma escrevi: a dor continua até acabar. Eis que.
Nos dois anos seguintes, arrumei outras dores, em lugares mais insubstituíveis do meu corpo que os dentes. Pois é isso, palavra a gente até acha, mas ela sempre está correndo de nós.
Em 2021, escrevi um livro. Me pergunto como eu sobrevivi. Onde eu estava?
Será que me aceitam de volta nesse lugar?
A tiragem dele agora está acabando. Eu passei meses sem gostar dele, mas de repente.
De repente as luzes piscam na sala e eu estou muito triste.
Olho os dentes agora, no espelho do corredor. DENTES! Me sinto um pouquinho bonita, como um filhote bravo. É engraçado como a vida seguiu e eu esqueci dos dentes. Eu esqueci da possibilidade. E da morte. Se bem que. Acho que não esqueci: estão todas em outros lugares. Enquanto eu tinha os dentes, eu não escrevia. Agora, escrevo. Eu faço outras coisas também. Algumas certas, outras nem tanto. É nelas que coloquei meus dentes. E agora eu posso dormir sem dores na mandíbula. E não preciso de fotos dos dentes. E de dentistas a toda hora. Em resumo, eu não tenho mais os dentes. Eu às vezes esbarro com eles. Como na foto. E me impressiono.
Um dia, tudo o que termina agora terminará como meus dentes. Assim mesmo, continuando. Em silêncio. Continuando como as folhas caídas ao redor da planta. Elas caíram, não desaparecem. Mas. Não é mais preciso olhar pra elas. É preciso olhar pras folhas que ficaram. É só uma, eu sei. Mas. Façamos cálculos. Devemos sempre fazer cálculos.
Enquanto isso, só me resta achar as palavras que, ainda que essa busca machuque mais que a paranoia ferindo minhas mandíbulas. E torcer por uma morte digna pra planta.
E escovar os dentes.
Hoje, bem dentro do tema da news, não vai ter uma finaleira trabalhada. Não leiam pornô no Kindle — leiam meu livro, tem no Unlimited. Sei lá, me ajudem a cuidar dos meus dentes.
Até a próxima, e obrigada por tudo, vocês.
Que texto delícia. Adoro como relaciona as coisas, criando uma bela dança de palavras. Quanto aos dentes, não tenho tanta sorte assim, os meus já me deram muito gasto (usei aparelho desde pequena) e hoje com sorte eles me ajudam nas mordidas necessárias da vida....
Que texto bonito e profundo. Tenho uma relação semelhante com meus dentes e com a minha escrita. Gostei muito, Carinha. ❤️