Nas últimas semanas, fui atravessada por textos que discutem a genialidade na Literatura contemporânea e quem ocupa esse lugar. A Fabiane Guimarães, na news Tristezas de Estimação, fez o questionamento que mais me pegou.
Ela escreve assim: “Não há espaço para livros mornos, bons-mas-não-espetaculares, ou livros que sejam pura e simplesmente um bom passatempo. Para furar a bolha dos escritores que leem escritores, para ser lido e comentado no ônibus, o livro precisa ser sério, extraordinário e genial”.
Fabiane, por sua vez, foi provocada por um artigo da professora Dirce Waltrick na Folha de S. Paulo que questiona a proliferação de gênios na Literatura brasileira — como se apenas essa figura fosse capaz de vingar na praça. E, em diálogo com Fabiane e Dirce, a escritora Dia Nobre discorre nesta publicação sobre o fato de nosso mercado exaltar escritoras latinas e menosprezar nossas contemporâneas brasileiras com trabalhos tão interessantes quanto.
Mas não quero contribuir com esse debate sério aqui. Quero falar umas bobagens e, infelizmente, vocês se dispuseram a ler.
Vou tirar 10 dias de férias e tentar escrever um livro. Não inteiro, óbvio. Minha intenção é ir até onde a fissurinha permitir. Depois de dois anos correndo de um lado pro outro feito uma barata que tomou inseticida na cara, entendi que é na febre que eu me crio. Que meu lugar na escrita, ao menos agora, é acendendo uma fogueira e deixando o incêndio comer solto até não comer mais.
Em As despê foi assim: escrevi a primeira versão dos cinco contos em 10 dias, com pausas entre um e outro, e dois grandes períodos de descanso entre a segunda versão e a terceira. Em ambas, cada conto me tomava, sozinho, mais de uma semana de reescrita (trabalhada em todos os dias e horas possíveis).
Enfim, entendi que escrever um livro por aqui é dar uma festa de arromba, ficar totalmente transtornada e depois acordar de manhã com 795 lembranças de coisas incríveis (e terríveis) que aconteceram, mas com uma casa em situação de calamidade. Aí, bem, lá vou eu arrumá-la, cheia de ressaca. No final, fico com a casa mais ou menos habitável e as lembranças da festa.
Tudo isso pra dizer que, nas últimas semanas antes do meu sabático de escassos dez dias, estive pirando de medo. De fracassar, de fazer escolhas erradas. De parir um lixo, de não ir a lugar nenhum. Tenho dois projetos de livro viáveis: o que quero escrever e o que seria lindo se eu escrevesse. Só que um fagocita o outro. Obviamente, o feio engole o bonito. E o meu ego, onde fica nessa história? E os elogios, e o sonho de ter uma editora cobrindo custos, e leitores e a mesona da Travessa do Leblon e alguma coisa, pelo amor de deus, e alguma recompensa pra essa humilhação toda?
Fui, como todas as mulheres da minha geração, criada pra ser perfeita. Só que não sou, como todas as mulheres da minha geração. Na verdade, estou mais longe da perfeição que 95% delas, segundo pesquisas sérias. E isso é uma tortura.
Não era bonita, não era rica, não era engraçada e, desde pequena, quando as meninas do colégio primário brincavam de cuspir umas nas outras, botei um negócio na cabeça diante de algumas informações que eu já tinha. Pensei: você vai com tudo nesse lance de escrever, hein. E mais: se possível, seja também inteligente.
E como é lindo ter poder, não é? A galera pedindo cola desesperada, a galera querendo fazer grupo enquanto postergava minha inclusão no time do queimado. Logo eu, a esquisita. Coisa linda demais saber fazer alguma coisa bem.
Só que aí.
Resumindo, aí a gente cresce, e vai pra círculos sociais cada vez maiores. E quanto mais coisinhas de nada dentro deles, percebemos que não somos os alecrins dourados que acreditávamos. Na faculdade, o povo era filho de professor universitário, o povo ouvia Novos Baianos, fazia análise desde os 10 anos. O povo lia Bukowski no original. Eu ainda tava abobada porque descobri Clarice Lispector, a moça que temporariamente virou piada naquela época pela profusão de frases de efeito no Orkut/Facebook — a maioria, falsa. Tiraram o valor da única dificuldade que eu desbravava até então.
O resultado disso é que eu entrei, como minhas contemporâneas, no trinômio provação-fracasso-pequena vitória. Funciona assim: a gente sempre está competindo, porque a glória pertence a 800 homens brancos e a cota de mulheres é de 10 pra 800. Nove brancas e uma mulher negra, por sinal. Aí, minhes amigues, é batalha campal. Todo mundo se matando pra provar seu valor, mas chafurdando no quase, caindo de cara no não.
É como eu disse dia desses, provavelmente copiando alguém mais inteligente que eu sem dar o devido crédito: nosso corpo sedia uma guerra. E atravessar todas essas perdas, quase um roteiro obrigatório, talvez seja a fagulha que me fez escrever sobre fugir/morrer/matar todos os dias das nossas vidas. Mas alguns dias, ah, alguns dias são mais barra que outros. As despedidas é um romance desconstruído sobre esses dias, metonímias do estar no mundo nessas condições insalubres e terrivelmente humanas.
Só que As despedidas, meu xodózinho, meu piquetucho, pedacinho rosa-azul da minha alma, caiu no mundo. E o mundo, vocês sabem. O mundo é um moinho. Ao sair do plano das ideias e virar um objeto, meu livro imaculado se tornou o nome que está na capa dele. Consequentemente, feio. Cheio de defeitos, uma belíssima bosta. Pois confundir uma coisa com a outra é exatamente a localização em tempo real do erro.
Nos últimos dias, eu me peguei pedindo a umas 5 pessoas diferentes: não leiam meu livro não. Não agora. Poxa, ele é péssimo. E um dia, ah, um dia eu vou ser boa, viu? A benevolência do tempo vai me curar dos erros, meu estudo frenético vai me redimir do pecado mortal de ter publicado um livro que não é perfeito. Minha tenacidade vai ser tão grande, mas tão grande, que um dia eu vou conseguir ser uma das 10, tá?
Vejo autores independentes falando dos seus livros com amor e orgulho. Enviando-os na maior cara de pau pra figurões e tudo mais. Por que, em algum momento, eu parei de conseguir fazer isso? Por que minhas contemporâneas independentes fazem isso chorando na terapia? Por que praguejam contra a própria escrita, dizem que querem desistir de tudo? Por quê?
Por que a gente não pode ser apenas boa até ser mais que isso?
Ontem falava dessas e outras piras pra um amigo que também escreve. Eu disse que, depois de muita guerra interna, o livro que não tem potencial algum de se tornar uma grande coisa é o livro que me convoca. Estou há um tempo estudando recursos, fazendo cursos, aparecendo todas as quartas e sábados nas aulas. Passei 2022 torrando a minha grana em oficinas, aberta às colisões. Mas, caceta, o que me convoca nesse momento na minha escrita é a sujeira.
Quero pensar na linguagem sim, quero socar camadas na protagonista e salpicar loucurinhas nos tempos verbais, mas quero, antes de tudo, recuperar o lugar da fruição da minha escrita. A gente que escreve tem uma farpa enfiada no pé e ela dói, e ela incomoda muito, e eu posso ir até um médico e tirar a farpa e deixar o meu pé lindo de morrer, mas sabem o quê? Eu quero pegar uma pinça caseira e catucar essa desgraça. Quero que vocês vejam o sangue rolando no rolê, quero dar uns gritinhos ridículos, quero as notas da minha voz. Quero suspender o mundo nelas, torná-lo um lugar ridículo também. Só um pouco, sabe? Aí depois a gente pensa o que faz com o pé.
Por outro lado, talvez essa sujeira seja o melhor que eu tenho a oferecer. Não gostou? Aí é problema de solamento. Eu quero, sobretudo, conceder a mim mesma o direito à mediocridade temporária. A ser apenas quem eu sou: uma mulher que voltou a estudar tudo isso só ao final dos 28 anos.
A minha escrita é, portanto, uma criança de três aninhos. Anda esquisito, fala esquisito, é chata pra uma caceta quase sempre. Mas é o que eu tenho, é o que eu amo. Um dia, e acho lindo dizer isso e reforço aqui, eu quero ser grande. Grande mesmo, grandona. Mas não pro pessoal me aplaudir no auditório da UFRJ, não. Quero ser grande pra ser independente — dessa avalanche de bobagens que a insegurança taca na minha cara. Quero olhar pro meu texto e dizer: Céloka. E isso bastar.
Independente, essa palavra que, ironicamente, hoje me assombra. E eu apostaria dinheiro que, se eu sobreviver por muitos anos ainda, vou voltar à origem de todas as coisas, vou voltar àquele mar de Copacabana e dizer: assim, esse livro é todo sujo, todo cagado, mas olha só o que você fez! Olha só, gente, isso aqui.
Isso aqui. Isso aqui é uma coisa!
Essa moça aqui na beira do mar, deixando a onda socar areia em todos os seus buracos, feito uma criança que desconhece a vergonha e o perigo. Essa moça que você escreveu.
Você escreve essa moça pra sujar o seu corpo.
Não o contrário.
PS: Outro dia foi o Indie Book Day, e eu só consegui pensar em Paula Medeiros, Julia Ungerer, Ana Sara, Patrícia, Bel, Lu e Aline (suspiros), que fizeram um livro que era pra ser uma negocinho virar um negócio-gócio mesmo, sem diminutivo. Eu não sei quanto à Pabllo Vittar, mas nós definitivamente fomos longe demais.
Carina, As despedidas foi um dos melhores livros que eu já li! Lembro das histórias, dos sentimentos e até de cada lugarzinho em que eu li teu livro! Já estou esperando o próximo ♡♡♡
Que texto Carina ❤️ me vi muito em suas palavras, só que aqui bem mais velha. Me vi olhando para a possibilidade da escrita aos 35 anos e hoje no 37 que tenho coragem de me chamar escritora. Pelo direito da gente só ser, se um dia for pra gente ser fodona, ok, se não, pelo menos a gente viveu e sentiu a vida pulsando...