No princípio, era tudo verbo. Era acordar dormir mijar rir mamar comer rir mais arrotar tremer chorar, chorar e chorar. No início já estava ali, mas também não estava, soprava como uma correnteza de vento, a força invisível que convoca o corpo a fazer pelo amor de Deus alguma coisa que pare, que pare o ventar. O problema é que o ventar para. Não de soprar, mas. Se torna vento. O atrito dos nomes, vulgares e próprios, coisas e pessoas. As instituições, os lugares. Da pepetinha rosa-claro ao Senhor Todo Poderoso que está te esperando puto, com uma caderneta apinhada dos seus B.O.s, no auditório do Juízo Final.
O atrito da linguagem também cria uma (todas as) cara(s) pra ele. As hélices que giram, os cata-ventos gigantes.
Ele: o Medo.
(O Juízo Final: um auditório com o ar-condicionado torando. Se tivesse que apostar, chutaria que o inferno é muito frio. Uma casa portuguesa com chão de pedra.)
Não sei quando veio o primeiro Medo. O primeiro do qual me lembro - a nitidez, os detalhes, os olhos de bicho das algozes - foi lá pelos cinco anos. Uma salinha de recreação gratuita pra crianças. Entro, meus pais fazendo qualquer outra coisa em qualquer outro lugar, e me sento à mesinha onde estão desenhando duas meninas mais velhas e uma mais nova que eu. Sei disso porque pergunto suas idades, quero muito fazer amigas, quero muito ter perguntas respondidas. Antes disso, eu achava que todas queriam o mesmo. Talvez eu acreditasse que eu era o próprio sinônimo de mundo. Como se sentisse o mesmo que o manto da Terra.
Todos querem fazer amigos, é óbvio. Então, falar. Muito.
Só que, depois de algum tempo de monólogo, uma das meninas, de uns oito anos, me interrompe:
por que você não cala a boca?
Eu não sei responder, e sem querer eu calo a boca mesmo.
Mas ela não.
Você tem cinco anos. Aposto que nem sabe quanto é mil mais mil. Quanto é mil mais mil?
Silêncio — na escola, só aprendemos a somar até as dezenas. E:
Não sei.
É claro que você não sabe. Você é burra. Burra.
Meus pais vão me buscar na salinha de recreação porque estou chorando. Assim, a cara empapada de drama, lambuzada. É um choro muito específico — aquele que não me permite interações, preciso de um lenço, de um pedaço de papel higiênico, chorar assim crava uma espécie de rolha na minha existência. Depois dele dá um sono, como se tivesse perdido sangue no processo. Uma cirurgia invasiva pelos olhos e pelo nariz, pra implantar um vazio. Tantas vezes isso.
Mas bem, os pais. Perguntaram o que aconteceu. Eu disse
eram umas meninas mais velhas e
elas me mandaram calar a boca e
disseram que eu era burra porque não sabia quanto era mil mais mil.
E eles riram. É dois mil!!!
Descobri que o mundo inteiro sabia fazer aquela conta certa, menos eu.
Aquela conta, onde cabem todas as contas.
Onde cabe o meu pesadelo recorrente com provas de Matemática do Enem: faltam quinze questões, eu tenho dez minutos e uma vontade absurda de fazer xixi.
Onde cabe o meu pesadelo.
Onde cabe.
Depois de não saber quanto é mil mais mil, eu nunca mais soube de nada. As agulhas: em riste, apontadas pra mim, voando pelo ar. Me esperando. Coisas tão idiotas nos moldam com tanta brutalidade.
De repente, todo mundo é Deus. Com a caderneta na mão. A temperatura em queda livre ao redor.
Enquanto escrevo esse texto, afunda aqui a certeza: nunca mais eu quero escrever. Chega. É cansativo, é desgastante, eu preciso pagar as minhas contas primeiro. Escrever é arrancar partezinhas do meu corpo, de pouco em pouco, e jogar os bifes pra plateia. Memórias são meus dedos dos pés. Ideias, os das mãos. Cada vez que solto um pedaço meu por aí, multiplico a minha área de contato — você pode acertar, por exemplo, a carne que liga minha mão aos dedos, antes protegida.
Eu viro, dessa forma, um tapete que cresce, cresce e pode ser pisoteado por mais gente, cuspido. Podem entornar café na minha pele, um bêbado pode cambalear pra fora do copo um punhado de cerveja quente. Casais podem trepar na minha cara com ferocidade, depois que a festa acaba e o povo vai embora. O horror. Mais e mais tecido pras agulhas que pairam, impiedosas. Mais chances de acertar. Por isso, chega.
Um Medo: não ter nada de bom pra mostrar pras pessoas. Ser a menina que não. Não sabe dançar, não usa saia como as outras da turma, não tem amigos. Ser um corpo indiferenciado pra onde ninguém olha. Virar o banco ao lado do brinquedão quebrado no pátio da escola, que não tem nada a dizer nem a fazer. Só fede e é feio.
A conta é o próprio mundo.
Funciona assim: você erra a conta, ou se recusa a fazer a conta.
Imediatamente, quando as pessoas tomam ciência desse desastre, uma nova leva de agulhas é solta de algum porão secreto, e se armam todas elas no seu entorno. Como abelhas.
Cada estrutura chutada libera sua própria coleção de agulhas. Elas têm até cores diferentes, mas infelizmente não podemos vê-las.
Esse ano destravei algumas levas de agulhas. É que minhas contas tiveram resultados muito próprios. E eu mostrei.
Um Medo: que algo me impeça de fazer uma tatuagem. A visão da agulha na mão de uma pessoa, a serviço dela e em benefício do meu corpo, traz paz. A agulha encostando no meu corpo, e não me ameaçando, ocupando o invisível com pequenas dores assassinas como sempre, traz paz. A materialidade daquela agulha não dói. Acalma.
Em 2021, fiquei meio fora de mim (falei sobre os antecedentes disso nessa news aqui). Em agosto daquele ano, marquei, com o dinheiro que não tinha, uma tatuagem em Copacabana, na Barata Ribeiro. Não só — pedi na costela. Não só — senti muitas cócegas. Não me movi por quase duas horas, olhando pra brancura anêmica na parede do prédio em frente, pras janelas mortas depositadas na brancura. Essa foi uma das maiores felicidades daquele ano — não poder me debater feito um animal em agonia por aquele tempo, que poderia ser qualquer tempo que eu me propusesse à não agonia. Conseguir. Engolir, de alguma forma, a agulha, porque engoli ali a sua alma.
Em maio de 23, eu corria todos os dias. Tirava os domingos pra andar pelo Aterro do Flamengo fechado pros carros. Existia alguma solidão e alguma tristeza nesse percurso — um estado ideal de narrativa. Em maio, tive algumas das poucas boas ideias que tive esse ano, e atribuo a isso. A corrida me salvava porque eu me inventava nos poros das coisas. O intervalo da agonia.
Bem, houve um domingo especialmente difícil, especialmente esquisito. Foi nele, por volta das 8h da manhã, que aconteceu a aparição. Uma menina de vestido branco, pedalando uma bicicleta do Itaú. O vestido curto, soltíssimo, branquíssimo, os cabelos crespos presos num coque alto. Uma espécie de nuvem encarnada. Nos minutos em que pude tê-la diante dos olhos, seu percurso de direção oposta, eu a amei, a invejei, a venci e a perdi. Eu tentei me criar na segurança dos seus vazios — as pernas à mostra, a saia voando com o vento, a ameaça de alguma outra imagem proibida escapulir dali. A coluna ereta, no entanto. Olhos inabaláveis. Se um dia conheci o antídoto do Medo, foi ela.
Ali eu decidi que faria. O quê? O que fosse preciso. Mesmo que.
Umas horas depois, saí pra pedalar também de saia. Me senti uma fração de anjo, mesmo sem conseguir reproduzir a firmeza dela diante dos vazios.
Tenho certeza que, se Deus existir, ela chega pra acabar com o mundo de bicicleta do Itaú.
Um Medo: ser a puta da escola. Pensando bem, a ideia de ser a puta da escola até me agradava. Sabe aquela moça que fazia algo absolutamente normal, tipo ficar com três pessoas em uma festa, mas calhava de ser mulher e ter menos de 18 anos? Nisso, nessa verdadeira bundice, consistia a a instituição puta da escola. Eu tinha um verdadeiro fascínio por colegas tímidas que recebiam essa alcunha da noite pro dia, depois de um único episódio, uma única festa. Eu gostava da ideia de alguém falar de mim, de ser vista, ainda que um simulacro, uma personagem fruto apenas da caretice alheia.
O que me assombrava era o primeiro som. O primeiro som da primeira rachadura do fim do mundo. Do quebrar de um cenário, do rasgo no tecido da boneca. A intuição do início deixando de ser só intuição. É desse cheiro de tempestade que eu tenho medo.
Escrevi sobre o fim do mundo no livro porque é sobre ele que escrevo sempre, em todos os momentos, em todos os textos. Todos os contos. Todas as edições da newsletter. Quando digo escrever, não digo fazer um exercício, ou ganhar R$ 500, ou preencher umas páginas porque preciso preencher umas páginas, porque preciso não ser esquecida e preciso, assim, não me transformar no banco feio e fedido do pátio da escola, me amadeirar pelos confins da eternidade. Esses são os maiores erros, porque aí eu vou chafurdar em terrenos desagulhados — sim, um equívoco. Perder a medida exata do fim do mundo, deixar que sobre ou que falte, perder uma só classe de agulhas, perdê-las na minha cabeça, isso é o que posso fazer de pior por todos nós.
Em tudo a ameaça, em tudo esse cheiro de tempestade. Em tudo o Medo. O dia em que ele acabar, acabo eu também. Porque aí, findam-se as batalhas. Sem a textura do Medo, a hélice para.
Teria isso em mente se um dia voltasse a escrever. É certeza.
Por enquanto, uso o atrito só pra
E aí, beber mais água.
Essa certamente foi a pior news que já servi nesse um ano de vida (sim, estamos de aniversário!), mas precisava voltar aqui nesses últimos dias d 2023 e agradecer a todo mundo que assinou, que compartilhou, que abriu diálogos possíveis e impossíveis com o pouco que faço aqui.
Foi tudo mais irregular do que eu gostaria, mas foi como foi. Graças a esse terreno baldio com grama crescendo eu conheci gente, troquei ideias maravilhosas e, de alguma forma, desaguei Medos pra, vendo-os todos pelados na tela, rir e seguir em frente. Isso é o que mais vale.
Que em 2024 a gente use as tempestades pra tomar banho de chuva.
Até a próxima!
Que os seus medos não te limitem e muito menos te impeçam de continuar escrevendo e compartilhando seus pedaços. De minha parte, recebo eles com muito carinho. Feliz 2024 e obrigada por ser tão inspiradora, mesmo quando você acha que não tem nada pra dizer.
Olhando pra trás, eu gosto hoje, de ter sido a puta da escola. Mil vivas pra nós. E continue por aqui, gosto de te ler. Beijocas!